terça-feira, 4 de abril de 2017

Há 2 mil anos, índios brasileiros já eram agricultores hipsters

Texto de Bruno Vaiano, revista Super Interessante 14.2.17
Há cinco meses, eu e outros quatro estudantes de jornalismo entramos em um ônibus urbano comum – do tipo que tem cobrador, não tem cinto de segurança e leva um brasão da prefeitura na lataria – e partimos de gravador e câmera na mão rumo à zona rural do município de São Paulo, em que vivem 101 mil pessoas (apenas 0,9% da população da maior cidade do país). A ideia era conhecer, de perto, a vida das mulheres que plantam nessas raras áreas verdes.
Até que demos sorte: com o itinerário escolhido, não precisamos de uma balsa para transpor a represa Billings, reservatório que separa bairros do extremo da Zona Sul, como Parelheiros ou Grajaú, do resto da cidade. A propriedade da agricultora Valéria Macoratti, nosso destino, fica exatamente no meio do caminho entre o marco zero da capital paulista, a Praça da Sé, e o centro de Santos, cidade litorânea próxima: são 30 km em linha reta para um lado ou para o outro.
É ali, no meio do que a população urbana convencionou chamar “nada”, que Macoratti decidiu viver após os anos que passou na cidade como professora. A mulher pegou o bonde andando: foi acusada pelos novos vizinhos, estabelecidos ali há décadas, de abordar a agricultura de forma idealista. “Eu comecei a conversar com os agricultores e vi que eles usavam muito agrotóxico”, contou a agricultora. “A terra não precisa disso.”
Não foi à toa: sua pequena chácara passa longe de tudo que é agricultura no imaginário popular. Alfaces gordas e crocantes já estão ao lado de tomates na terra muito antes de se unirem na salada. Um burrinho vive em paz com dezenas de cães. E na parede há uma inscrição: “água se planta”. Referência aos mananciais e nascentes da região, os poucos que não foram soterrados por grandes avenidas.  
Em outras palavras, Valéria cria algo próximo de uma floresta domesticada, cheia de variedade. E esse método, a arqueologia acaba de descobrir, é o futuro da agricultura há 2 mil anos.
Um artigo científico publicado na semana passada pela pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Jeniffer Watling veio à tona porque a devastação da floresta amazônica no Acre revelou mais de 450 sítios arqueológicos pré-históricos chamados geoglifos. Eles são círculos desenhados na terra, e provavelmente eram palco de rituais religiosos e reuniões para discussão de assuntos públicos entre índios há mais de 2 mil anos. Os ar de mistério milenar da descoberta – que você pode ver aqui na SUPER – tirou o foco da mídia de algo ainda mais interessante: se havia círculos no chão, é porque os povos pré-colombianos haviam arrancado as árvores dali em algum momento. O que bate de frente com a impressão idílica que temos dos indígenas como povos caçadores-coletores inocentes.
“Nós abordamos o impacto ambiental dos geoglifos”, afirmou Watling ao The New York Times. “Muitas pessoas têm a ideia de que a Amazônia era uma floresta intocada, e esse obviamente não era o caso.” A questão é que modificar o ambiente não é em si um problema. O problema é como você faz isso. E nesse quesito, tanto os índios como Valéria dão um 7 a 1 em nós.
Hoje, o Brasil é cheio de plantações enormes de vegetais que ninguém come. Por um lado, elas são imprescindíveis para a nossa economia: a cana-de-açúcar vira combustível, os eucaliptos viram papel e 70% da soja vira ração para o gado que nós comemos. Por outro, elas são péssimas para todo o resto que está em volta. O solo que só recebe um tipo de cultura por muito tempo perde nutrientes, e os animais da região destruída pelo latifúndio têm seu cardápio, antes variado, reduzido a vários hectares de vegetação idêntica e pouco saudável. As consequências vêm de várias formas: na França, por exemplo, hamsters selvagens começaram a comer os próprios filhotes por deficiência de vitamina B3 (veja aqui). Culpa do milho dos produtores da região da Alsácia, que não tem o nutriente.
O método que é aplicado por Macoratti e pelos pré-colombianos, chamado agrofloresta, é sustentável porque imita a vida em vez de acabar com ela. Afinal, desde que o mundo é mundo as laranjas nascem em árvores. Suas flores dão às abelhas matéria-prima para o mel, seus frutos alimentam pássaros, e a própria morte da laranjeira libera nutrientes no solo. Porque deveria ser diferente? Ao se inserir na cadeia alimentar dessa maneira, o ser humano se torna só mais um consumidor do que uma árvore pode oferecer a seu entorno, e não um agente que obriga a vida a se curvar aos seus pés e seguir seu cronograma e itinerário.
Ou, nas palavras de Ana do Mel – outra das agricultoras agroecológicas que visitei no ano passado, na pequena cidade de Embu-Guaçu –: “eu vejo a abelha não como um animal que está a meu serviço, mas como parte disso tudo”. Os índios entenderam essa máxima muito antes de nós. Segundo a pesquisa, eles provavelmente plantaram espécies como o milho ou a abóbora, tiraram a vegetação rasteira e mudaram sementes e mudas de lugar: uma espécie de reordenação não invasiva de plantas úteis que cria um pequeno supermercado pré-histórico na floresta.
No passado e no presente, a mata nativa preservada e a mistura de culturas se refletem, é claro, na saúde de quem come. Feijões que crescem com vizinhos como tomates ou bananas são mais fortes – da mesma forma que um trabalho de escola em grupo tende a sair melhor que um individual. Isso tudo é um resumo: para entender de vez como surgiu a ideia da agrofloresta e porque ela é uma promessa para o futuro, vale ler esta outra reportagem aqui, também da SUPER.
Moral da história? A agricultura sustentável que levou paulistanos idealistas à vida rural era a forma mais óbvia de plantar algo na Amazônia há 2 mil anos. Prova de que ninguém precisa inventar a roda (ou carro a água) para salvar a natureza: há muitas soluções por aí, algumas prontas para serem desenterradas por algum arqueólogo.

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